quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Bendito foi o fruto?



A leitura do livro “Os três lugares de uma mulher”, publicado pela Edições Salamandra, no ano 2000, da autoria da professora e escritora natural de Vila Franca do Campo a residir em Lisboa, Natividade Ribeiro, fez-me recordar um pouco os trabalhos e muitas conversas que ouvi sobre o cultivo do ananás, o denominado rei dos frutos.
Na minha família não houve muitos cultivadores de ananases, a não ser uma tia minha, irmã do meu pai, que no seu quintal, na Boca da Canada, na Ribeira Seca, possuía uma estufa. Como se pode depreender, a produção era limitada e as receitas obtidas da venda dos ananases não era suficiente para o sustento da família, mas era como que um “subsídio de Natal” que equilibrava o orçamento. Os ananases que não tinham as dimensões suficientes para serem vendidos eram usados para a alimentação e para fazer algumas ofertas a vizinhos e a familiares.
A estufa que esteve a produzir durante várias décadas acabou por ser abandonada por várias razões: a primeira, pelo facto das receitas já não estarem a compensar, a segunda, por dificuldade em encontrar mão-de-obra especializada e pelo facto do único acesso à mesma se fazer pela porta principal da casa pelo que era um incómodo a passagem das leivas, dos incensos e de outros materiais necessários ao cultivo do ananás. Hoje, só restam as paredes e no seu interior cultivam-se alguns produtos agrícolas necessários à autossubsistência, como batateiras, cebolas, couves, etc.
Na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, para além de alguns produtores que possuíam muitas estufas que davam trabalho a muita gente, havia várias famílias que nos seus quintais ou em pequenas quintas possuíam uma ou duas estufas, a esmagadora maioria delas, hoje, abandonadas.
Para além dos pequenos e médios produtores de ananases, a grande maioria deles também trabalhava a terra, havia também, ao que me lembro, poucas pessoas que trabalhavam a tempo inteiro nas estufas, os estufeiros, a maioria já faleceu ou foi obrigada a emigrar, e os chamados leiveiros que iam ao “mato” apanhar as leivas que serviam de cama quente para as plantas. Para além destes últimos, cujo trabalho era sazonal, as estufas também davam trabalho, também temporário, a muitos jovens durante o período em que eram carregadas.
Fui assistindo à decadência da cultura do ananás e sensível às questões relacionadas com a proteção ambiental, também ia assistindo à degradação de algumas áreas protegidas, como a Serra Devassa ou a Reserva Natural da Lagoa do Fogo, em virtude da extração de leivas para o que restava das estufas ainda em produção. A minha consciência levou-me a, através da associação Amigos dos Açores, denunciar esta situação, primeiro a nível regional junto da secretaria que tutelava do ambiente e depois junto da Provedoria de Justiça, em virtude das autoridades regionais estarem a ser cúmplices da destruição do nosso património natural por não fazerem uma fiscalização que impedisse que as leis não fossem cumpridas.
Neste processo assisti a um pouco de tudo, desde a incompreensão de alguns cultivadores de ananases que alegremente estavam a caminhar para uma situação insustentável já que o preço das leivas era cada vez maior e não havia uma procura de alternativas, como parece que hoje existem, até à mentira ao Provedor de Justiça por parte do Governo Regional dos Açores que garantiu que havia fiscalização permanente na Reserva da Lagoa do Fogo, quando tal não acontecia e o número de vigilantes era tão reduzido que nem humanamente seria possível.
Há poucos dias, passadas mais de duas décadas, ainda tive o “prazer” de ouvir um cultivador de ananases que é tido como protetor do ambiente e do património natural, adepto de uma agricultura sem químicos e com elevadas preocupações sociais, atirar-me à cara que eu era um dos responsáveis pelas dificuldades por que passava o fruto rei. Enfim, incompreensões e feridas que não se curaram com o tempo…
Por último, não queria deixar aqui de recordar que na minha rua convivi com várias pessoas que tinham estufas e que sempre que falavam em frutos, estavam sempre a referir-se ao ananás. Lembro-me de numa das casas que era visitada mensalmente pela “Sagrada Família” aquando das orações, um dos membros da família, que sofria de doença “mental”, ao rezar a Ave-maria dizer o seguinte: “Ave-maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e
bendito é o fruto (e acrescentava) do ananás …”
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, nº 27329, 16 de Janeiro de 2013, p.13)

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