quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A propósito do Senhor da Pedra


A propósito do Senhor da Pedra

No final da década de sessenta e início da de setenta do século passado, na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo a vida era muito difícil para a maioria dos seus habitantes que viviam essencialmente da agricultura e da pecuária.
Existiam quatro ou cinco pequenos agricultores e alguns pequenos lavradores, cerca de meia dúzia de comerciantes e algumas famílias com um dos membros emigrado que viviam um pouco melhor, isto é, como se dizia na altura, com muita fartura dos produtos da terra mas pouco dinheiro na algibeira.
A grande maioria trabalhava ao dia e os salários eram baixos, dando apenas para viver o dia-a-dia com muitas dificuldades que por vezes eram resolvidas temporariamente por empréstimos de familiares e amigos que possuíam um pouco mais.
A grande maioria das crianças, embora frequentasse a escola, não passava da quarta classe ou nem a ela chegava. No meu tempo, só prosseguiram estudos, os filhos de emigrantes, como era o meu caso, os filhos de funcionários públicos ou os filhos dos comerciantes.
Os cuidados de saúde eram muito precários, a maioria morria sem sequer ser identificada a doença. Sempre que alguém perguntava a razão da morte, a resposta era quase invariavelmente: “foi um malesinho”. No meio desta desgraça, o Dr. Simas lá ia salvando um ou outro do caminho certo para Santo Amaro.
Naquela altura, as festas religiosas e sobretudo a do Senhor da Pedra, que para nós crianças (creio que também para os adultos) que mal saíamos de Vila Franca, era maior e mais bonita que a do Santo Cristo, marcavam o calendário anual.
Era pelas festas, que em muitas casas entrava a carne de vaca, o pão de trigo, a massa sovada e o arroz doce. Para as crianças era pelo Natal e pelo Senhor da Pedra que recebiam algumas prendas/brinquedos.
Pelo Natal os rapazes recebiam harmónicas rudimentares, por vezes de plástico ou de material semelhante, cornetas, bolas e o sonho de muitos era ter no sapatinho um canivete ou pequena navalha que era um utensílio que todos os camponeses possuíam e que tanto servia para cortar o pão como instrumento de trabalho. As raparigas recebiam essencialmente bonecas sem qualquer comparação com as “barbies” de hoje.
Pelo Senhor da Pedra havia, para as crianças, dois dias especiais, o da compra dos brinquedos feitos em louça de barro, penso que era no próprio domingo da festa, e o do fogo preso que era na terça-feira, o último dia das festas.
Os “assobios” ou “apitos” eram oferta tanto para rapazes como para raparigas, mas enquanto estas recebiam miniaturas de utensílios usados na cozinha, como trempes, panelas, talhões e alguidares, os rapazes recebiam instrumentos ligados ao campo, como barris, funis, ou um burro com seirão.
Na terça-feira, as festas terminavam com uma batalha naval entre dois barcos colocados entre as escadas localizadas a sul da Igreja Matriz e o Jardim Antero de Quental, a qual era assistida por muito povo, tendo uma vista mais privilegiada os que se posicionavam nas escadas e no adro da referida igreja.
Para suportar as despesas da festa, nomeadamente o dinheiro despendido nos carrinhos de choque, nos carrocéis ou nos matraquilhos havia quem ia colocando as suas míseras poupanças, como algumas moedas recebidas a troco de algum recado, feitas ao longo do ano, em mealheiros de barro que eram partidos nas vésperas do Senhor da Pedra.
No meu caso, a solução encontrada seria nos dias de hoje classificada como empreendedora. Num terreno que a família possuía na Courela, situado na Ribeira Seca de Cima, os meus pais semeavam sécias que floriam um pouco antes do Senhor da Pedra. Estas sécias eram colhidas e postas à venda por uma tia minha que possuía uma casa cujo quintal confrontava com o terreno onde estavam as flores. As receitas obtidas eram divididas por mim, por meu irmão e por uma prima minha.
As poupanças que via fazer em casa e o aperto em que viviam as pessoas que conhecia faziam com que, apesar da pouca idade, refletisse muito sobre o assunto, de tal modo que era tão comedido com os meus gastos nas festas que em alguns dias voltava a casa sem ter gasto um só escudo.
Com este perfil, com certeza não sirvo para autarca já que para a maioria o que importa é esbanjar dinheiro, o que as autarquias têm e o que não têm.
Teófilo Braga

(Correio dos Açores, 28 de Agosto de 2013)

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