quarta-feira, 10 de outubro de 2012
O CANTO DA CRUZ
No século passado, existia em cada localidade ou freguesia um sítio onde os trabalhadores rurais, sem patrão fixo, se dirigiam diariamente e esperavam que algum agricultor os fosse contratar para trabalhar no dia em questão ou mais do que um dia, caso os trabalhos da época em questão assim o exigissem.
Na minha terra natal, a Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, o sítio onde os camponeses sem terra se juntavam, que em vários locais era conhecido como “o canto”, ficava situado no cruzamento da estrada regional com a rua da Cruz, sendo conhecido então e ainda hoje por Canto da Cruz.
Não tenho qualquer informação sobre a data em que a prática de contratar trabalhadores daquela maneira terá começado, mas se não me falha a memória o seu fim terá ocorrido por altura do 25 de Abril de 1974 ou pouco depois.
Lembro-me que, pouco depois daquela data, houve uma tentativa de criar em cada localidade das zonas rurais da ilha de São Miguel sindicatos de trabalhadores rurais, tal era o seu número e tão precárias eram as suas condições de vida. Também me recordo da situação delicada em que viviam os pequenos agricultores que passavam dificuldades pois os fatores de produção não paravam de crescer e os preços dos produtos extraídos das terras pouco mais davam do que para cobrir todas as despesas.
Na altura, estava entre a espada e a parede. Conhecia a vida de miséria e de fome, nalguns casos, em que viviam muitos dos meus colegas de escola e alguns familiares, que foram obrigados a emigrar para poderem sobreviver com dignidade, e era filho de um pequeno agricultor que, se não fosse o dinheiro que conseguiu poupar durante os dez anos que trabalhou, no duro, nos caminhos-de-ferro no Canadá, teria grandes dificuldades para proporcionar aos filhos a instrução que os poderia levar a abandonar os árduos trabalhos da terra.
Os sindicatos agrícolas não vingaram, nem mesmo depois de uma fusão de todos eles num só, e os pequenos agricultores não foram capazes de, ultrapassando os seus egoísmos, criar cooperativas ou associações de produtores que os defendessem.
Abro aqui um parêntese para recordar o nome de uma pessoa que esteve envolvido na criação do sindicato de Vila Franca do Campo, o Manuel Sousa, que era um trabalhador rural exemplar. Com a escolaridade obrigatória exigida na altura, a quarta classe, era culto, lia tudo o que podia, tinha um relacionamento exemplar com os outros e era conhecedor do trabalho que fazia. A doença de um familiar, a que a medicina em Portugal não foi capaz de curar, fez com que tivesse que seguir as peugadas de muitos outros, a emigração.
Desaparecidos os trabalhadores rurais, com o definhamento da agricultura, a mão-de-obra da Ribeira Seca passou-se para a agropecuária.
Na Ribeira Seca, onde hoje há meia dúzia de lavradores, existiram muitos pequenos lavradores que na sua maioria eram associados da Cooperativa Agrícola de Santo Antão, ainda hoje existente e com instalações em Ponta Garça. Meu pai, chegou a ser dirigente desta cooperativa, na altura em que o Eng. Emiliano Carneiro esteve ligado à UNILEITE.
Com o abandono da agricultura, com a modernização da pecuária, com a crise da construção civil, nem o comércio local escapou.
O pequeno comércio que chegou a contar com quatro mercearias, duas das quais junto ao Canto da Cruz, hoje está reduzido a duas que, nem de perto nem de longe, têm o movimento das de outrora. Tal como noutras localidades da ilha, a sua decadência deve-se ao facto das pessoas optarem por abastecer-se nas grandes superfícies existentes em Ponta Delgada, agora a poucos minutos, ou nas representações daquelas em Vila Franca do Campo.
O desemprego galopante, o crescente desinteresse pelo investimento na educação, a vida paradisíaca difundida pelas estações televisivas, o dinheiro fácil obtido pelo roubo, pelo tráfico de estupefacientes ou obtido, sem contrapartidas por quem está em condições de trabalhar, através do Rendimento Social de Inserção, tem levado a que a degradação social se implante um pouco por todo o lado.
Quem passa na Ribeira Seca, em determinadas horas do dia, vê que o Canto da Cruz voltou a estar povoado. Para além dos que estão em merecida hora de repouso, muitos outros não estão à espera de trabalho, mas aguardando que o maná caia do céu.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 10 de Outubro de 2012)
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