quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O REGRESSO DOS BURROS

De vez em quando, minha tia que tem mais de 80 anos pergunta-me se me recordo de meu avô, Manuel Soares, que morava na rua do Jogo, na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, ter uma burra. Minha tia esquece-se de que, sendo ela ainda jovem, na sequência de uma doença que atingiu vários membros da família, por conselho médico meu avô foi aconselhado a retirar a burra que pernoitava no rés-do-chão da sua casa. À semelhança de meu avô outras pessoas na localidade também usaram burros para transporte de cargas, nomeadamente canados de leite, lenha ou sacas de milho para os moinhos. Se bem me lembro, lá na rua possuíam burros o senhor Ernesto que possuía meia dúzia de cabeças de gado e que para reforçar o seu orçamento familiar também se dedicava ao comércio de alguns produtos agrícolas, tendo ficado com a alcunha de “Ernesto das mónicas” por as (nêsperas) ter vendido e o senhor José Cabral que foi o último moleiro da Ribeira Seca, cuja moagem elétrica foi musealizada. Para além das pessoas já mencionadas, também me recordo de terem possuído burros, na Ribeira Seca, três outros moleiros: José Estevão, Manuel Verdadeiro e Ângelo Verdadeiro. O senhor José Estevão, que foi último moleiro que usou um moinho movido pela água da ribeira que atravessa a localidade e que, segundo o senhor Manuel Soares Ferreira, chegou a alimentar 21 moinhos, desde a nascente, na Granja, até à foz onde se localiza o moinho da “tia” Leopoldina, era um grande conhecedor da história de Portugal, tal como foi transmitida pelo Estado Novo. O meu tio Manuel, irmão de minha avó Maria Verdadeiro, primeiro teve um moinho de água, localizado nos Moinhos, hoje em ruínas, e depois um já movido a eletricidade, localizado na rua Nova, também possuía uma burra que depois foi herdada, tal como o moinho, pelo seu filho Ângelo que morou na rua da Cruz. Este meu primo Ângelo que foi casado com uma prima minha afastada, Isaura Braga, era o que se pode chamar um doente pelo futebol, mais propriamente pelo Sport Lisboa e Benfica. Assim, sobretudo às segundas-feiras, sempre que o “glorioso” ganhava os jogos no dia anterior, quando o Ângelo ia buscar mais milho para moer, para além de muitos vivas ao Benfica que ia distribuindo pelas ruas, apresentava a burra bem aperaltada e com as unhas pintadas de vermelho. Com o passar do tempo, os burros deram lugar aos cavalos de modo a que na minha rua, a Rua do Jogo, depois de tirado o leite da manhã, em frente de muitas casas, amarrados a uma argola que então existia ou completamente livres encontravam-se vários cavalos que transportavam o leite para os três postos de recolha, um da Lacto Açoriana, outro da Laticínios Loreto e outo da Unileite, situados no centro da Ribeira Seca. Com o progresso, desapareceram os cavalos que foram substituídos pelas carrinhas de tração às quatro rodas, pelos jipes e pelos tratores e ao mesmo tempo foram desaparecendo os pequenos lavradores que não tiveram capacidade para modernizar-se e que ou emigraram ou foram forçados a abandonar atividade, pois não tinham terras suficientes para aumentar o número de cabeças de gado para incrementar a produção de leite, a única maneira de aumentar os rendimentos face à desvalorização daquele e ao aumento dos custos de produção. Há alguns dias estive a conversar com um familiar de uma das pessoas mencionadas neste texto e qual não foi o meu espanto quando fiquei a saber que, hoje, para algumas famílias a situação é muito semelhante à vivida no final da década de 60 e no início da década de 70 do século passado. Desempregado da construção civil, vai sobrevivendo de alguma ajuda governamental e do leite de duas vacas que usa para fazer queijos ou para beber. Para tratar dos animais desloca-se a pé. A pobreza, embora modernizada, voltou. Para quando o regresso dos burros? Teófilo Braga (Correio dos Açores, nº 27307, 19 de Dezembro de 2012)

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