terça-feira, 14 de junho de 2016
Martins Garcia e os animais
Martins Garcia e os animais
Tal como muitos outros literatos açorianos, o picoense José Martins Garcia, considerado como um dos mais importantes escritores dos Açores do século XX, nos seus livros faz referência aos animais.
Da sua obra, que felizmente vai ser reeditada pela Companhia das Ilhas, apenas conhecemos os livros “Contrabando Original” e “Lugar de Massacre”, ambos editados pelas Edições Salamandra, e estamos a ler “Katafaraum é uma nação”, editado pela Assírio e Alvim.
Em “Lugar de Massacre” o autor faz uma leve referência às touradas no contexto da educação ideal para “nobres”. Da leitura do extrato, abaixo, facilmente se conclui que o que Martins Garcia escreveu, em 1996, não perdeu atualidade:
“À custa de resignações e desprendimentos, a condessa zelou. Para seu filho nunca se misturar com a plebe. Para nunca se contaminar no ensino público. Para não conviver com grosserias. Para a sanidade no vocabulário, para o gesto ancestral, o beija-mão de raça, o justo ângulo duma visão superior, o gosto pela sinfonia, a condescendência para com a ópera, o elogio da tourada à antiga, o conheci¬mento da heráldica e o horror das leituras filosóficas.”
Sobre o relacionamento entre os humanos e os animais de companhia e os de trabalho o extrato de “Contrabando Original” com que termino esta nota é magistral e, apesar da mecanização dos trabalhos agrícolas, perfeitamente atual:
“Mas a minha alma sentia-se despótica, perdida nos labirin¬tos do poder. A minha alma humilde desejava tanto comunicar com a vida! Os olhos do cão Baleeiro dedicavam-me uma ternu¬ra impossível de encontrar em olhos humanos. Pontapeado por José, acicatado por Mário, enxotado por quase todos, difamado por pulguento, ladrão, lambia-me as mãos a troco dum afago no focinho ou nas orelhas. Era vagamente dourado no lombo e no cachaço, branco nas patas e na risca do focinho. Comovia-me (ou eu desaprovava?) a sua fidelidade a quem o maltratava.
António estimava-o e, só por ser jovem e frágil, não resolvia à punhada o rancor que lhe ia nos olhos quando o Baleeiro levava pontapés. Eu fazia o pouco ao meu alcance para o desagravar, roubando comida que lhe dava às escondidas, buscando no seu olhar bom um sinal de aprovação. Eu queria, além disso, que os animais me compreendessem. A vaca cangada, por exemplo, extenuada de fazer carretos, vergastada e picada com o ferrão da aguilhada quando as forças lhe faltavam e ela ajoelhava, talvez implorando clemência ao seu deus, representava um suplício mais atroz que o dos mártires atirados aos leões (os mártires acabavam e sentavam-se no seio de Deus; a vaca Rosada sofria sem acabar e deitava-se no curral, dorida, e era aí todo o seu paraíso).”
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 30958, 14 de junho de 2016, p.16)
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