terça-feira, 10 de outubro de 2017

Manuel Soares e o seu tempo (3)



Manuel Soares e o seu tempo (3)

Meu avô, Manuel Soares, sempre foi lavrador, isto é criador de gado bovino e como complemento dedicava-se à agricultura, sobretudo ao cultivo de milho, para fabrico de pão que era preparado por minha avó, Maria dos Santos Verdadeiro, e para consumo dos animais, galinhas, porcos e cavalos/éguas.

Em 1950, meu avô era portador de um Boletim de Sanidade, passado pela Delegação de Saúde de Vila Franca do Campo, com o número 49, onde estava indicada como sua profissão a de “Abastecedor e vendedor de leite”.

Estávamos longe dos bons períodos para os produtores de leite, em que o mesmo era vendido, a preço razoável às indústrias de laticínios. Com efeito, o leite que meu avô extraía das vacas era na sua maioria vendido numa mercearia em Vila Franca do Campo e acontecia muitas vezes que o mesmo não tinha compradores pelo que era devolvido e usado para alimentar o porco.

A crise da lavoura não acontecia apenas em Vila Franca. De acordo com o jornal Correio dos Açores, a 10 de maio de 1950, o Grémio da Lavoura reuniu-se com uma delegação de lavradores, tendo numa “Nota Oficiosa”, assinada por João Luís Pacheco da Câmara, decidido, por unanimidade, manter “o preço actual de 1$80 por litro, para venda de leite ao Público, visto haver sido considerado que qualquer baixa, neste momento, agravaria ainda mais a já precária situação da Lavoura”.

Sobre o cultivo de milho, de acordo com o Manifesto nº 540, da Comissão Reguladora dos Cereais do Arquipélago dos Açores, no ano de 1964 e 1965, em 7 alqueires de terra, situados na Quebrada e na Lomba da Cevada, foram produzidos 200 alqueires de milho amarelo e 80 alqueires de milho branco.

Não me recordo de minha avó fazer pão de milho amarelo que tinha um sabor diferente do branco e que apreciava muito. Só o comia quando ia a casa da minha tia Esméria Soares, a irmã mais nova de meu avô, que morava na rua da Palmeira, na Ribeira Seca, e que emigrou para os Estados Unidos da América, onde viveu na cidade de Bristol.

Nos últimos anos em que meu avô cultivou milho o transporte era feito através de um veículo motorizado, mas ainda me lembro do mesmo ser feito num carro de bois que meu avô possuía, sendo o mesmo puxado por dois bois “vermelhos”, possivelmente da raça Ramo Grande que também eram usados em trabalhos agrícolas, como lavrar e gradar as terras.

Foi a meados da década de 60 que chegou a casa de meu avô o primeiro aparelho de rádio, comprado pelos meus pais. Para ele a rádio não era bem-vinda e sobretudo incompreensível quando se tratava de relatos futebol que ele nunca terá visto ao vivo.

Mas como não há mal que nunca acaba, um dia a situação alterou-se, pelo menos parcialmente. Tal ocorreu quando, por mero acaso, ele ouviu umas quadras proferidas pelo Dr. Francisco Carreiro da Costa numa das suas palestras radiofónicas proferidas no Emissor Regional dos Açores, entre abril de 1945 e maio de 1974. A partir daí, semanalmente, meu avô tornou-se um ouvinte assíduo daquele programa naquela estação de rádio.

Com cerca de 90 anos meu avô ainda tratava de uns gueixos, tendo sido atacado por um deles e ficado ferido com alguma gravidade pelo que teve que ser visto por um médico, o que até então nunca tinha acontecido.

Como ele se recusava a ir ao hospital, a solução encontrada foi fazer um médico ir lá a casa para fazer uma primeira observação. Para o efeito foi um sobrinho seu que era veterinário que o foi visitar acompanhado de uma médica que lhe foi apresentada como veterinária amiga. Esta detetou que ele poderia ter algo partido e recomendou-lhe a sua deslocação ao hospital para fazer radiografias. Como resultado detetou-se que ele tinha costelas partidas recentemente e outras já soldadas que havia partido ao longo da vida.

Manuel Soares veio a falecer no dia 25 de setembro de 1989, às 23 horas e 55 minutos, sendo a causa da morte “insuficiência cardíaca congestiva”. Está sepultado no cemitério de Santo Amaro, em Vila Franca do Campo.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31352,11 de outubro de 2017, p. 17)

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Manuel Soares e o seu tempo (2)


Manuel Soares e o seu tempo (2)

Aos quinze anos meu avô, Manuel Soares, assistiu ao derrube da monarquia que como é sabido ocorreu no dia 5 de outubro de 1910.

O jornal monárquico, que nunca virou a casaca, “O autonómico”, a 15 de outubro do referido ano, recebeu a notícia da transformação do regime politico e, pela mão do seu diretor, afirmou o seguinte: “A implementação da república em Portugal é um facto sensacional. Se feliz ou infelizmente, verá e dirá quem mais vida tiver”.

Com o novo regime foi nomeado para o cargo de administrador do concelho o Dr. Mariano d’Arruda, talvez o mais influente político vila-franquense da 1ª República, que de acordo com o jornal mencionado foi merecido pois aquele “se tem manifestado um fervoroso apóstolo da República e dado provas de competente e prudente para as atuais circunstâncias”.

Em 1916, no dia 12 de agosto, Manuel Soares fez a inspeção sanitária para o serviço militar, tendo sido “apurado definitivamente” para a infantaria. Das informações constantes na caderneta consta o seguinte: possuía a altura de 1 metro, 71 centímetros e 5 milímetros e apresentava os seguintes sinais particulares: cicatrizes na testa e na face esquerda e sinais de cor castanha pelo rosto.

Entrou para a tropa no dia 12 de janeiro de 1917, no Regimento de Infantaria nº 26, ficou pronto da instrução de recruta no dia 10 de abril de 1917 e licenciou-se em 31 de junho de 1919.

Na caderneta militar consta ainda a seguinte informação, que contradiz o certificado de habilitações: habilitações literárias e profissionais antes do serviço militar “Ler e escrever mal (2º grupo).

Quando meu avô foi cumprir o serviço militar, o mundo já estava em plena Guerra Mundial (28 de julho de 1914 - 11 de novembro de 1918) e Portugal que, segundo José Pacheco Pereira, participava “na guerra para defender os seus direitos coloniais e para se candidatar a parte das possíveis reparações alemães” estava prestes a assistir ao verdadeiro cataclismo que ocorreu a 9 de abril de 1918. Segundo, Luís Almeida Martins, naquele dia “morriam 614 militares portugueses e 6585 eram feitos prisioneiros” na Batalha de La Lys.

Estava meu avô a cumprir o serviço militar quando ocorreu um surto de gripe espanhola. Conta ele que transportava doentes e que comia e bebia parte dos alimentos que a estes eram destinados e que era recusado por eles dado o seu estado de saúde. Dizia ele que tinha de comer para ficar forte e não ser atingido pela doença e “ria-se” por não ter ficado doente.

Sobre a gripe espanhola que teve duas vagas em 1918, uma na primavera e outra nos finais de julho/início de agosto e em 1919 e 1920, o historiador Luís Almeida Martins, escreveu: “O mesmo não se pode dizer da tristemente célebre “pneumónica” que em 1919 e 1920 se abateu sobre quase todo o mundo, ceifando pelo menos 50 milhões de vidas, 120 mil das quais de cidadãos portugueses”.

A confirmar as memórias de meu avô o historiador Sérgio Rezendes, no seu livro “A Grande Guerra nos Açores- Património e Memória Militar”, escreveu: “ A epidemia já havia atingido uma tal dimensão que começavam a faltar para além de médicos e enfermeiros, os auxiliares de enfermaria, os faxinas e os operários que acabariam por ser substituídos por soldados do Exército”. O mesmo autor, no livro mencionado, também refere que também foram “atacadas algumas praças do RI 26”, precisamente o Regimento de Infantaria de que meu avô fazia parte.

Sobre os efeitos da gripe espanhola em Vila Franca do Campo, o jornal “O Autonómico”, de 9 de novembro de 1918, referiu o seguinte: “ A epidemia que, por infelicidade, não nos poupou, vai-se alastrando consideravelmente por todo o concelho, de dia para dia, sendo já grande o número de pessoas atacadas; porém atualmente, mercê de Deus, nenhuma com sintomas de gravidade” e acrescenta que “até agora, apenas dois óbitos se registaram: um, por falta de mais cautela d’um rapaz novo, casado, deixando viúva e três filhinhos, e outro, por a epidemia bater à porta d’um doente, já adiantado em anos e cansado bastante das grandes lutas pela vida”.

(continua)
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31347, 4 de outubro de 2017, p.10)